segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

A INVENÇÃO DA ESCRITA E A PROFISSÃO DO ESCRIBA POR VERE GORDON CHILDE

QUEM?
Vere Gordon Childe (1892/1957). Filólogo australiano que se especializou em arqueologia.
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COMENTÁRIO
Os escribas, como atividade profissional, floresceram junto com as civilizações que os geravam, pois eram eles que compilavam, escreviam, contabilizavam, copiavam e imortalizavam os conhecimentos que surgiam através dos tempos e das épocas, permitindo assim que pudessem ser reproduzidos e repassados para um maior número de pessoas, e que pudessem ser levados adiante bem além da limitação de uma geração. Trata-se de um momento histórico único e divisor de águas no que concerne a cultura humana. Eles eram figuras centrais também na manutenção da contabilidade das primeiras instituições humanas, mantendo um controle tal que poderia ser acessado por qualquer outra pessoa e/ou integrante do grupo a que pertecia, e que dominasse igualmente o código matemático e o da escrita. Esses homens foram importantíssimos no desenvolvimento da cultura humana através dos tempos, e é disso que Gordon Childe nos fala em seu excelente livro O homem se faz a si mesmo, traduzido no Brasil como A Evolução Cultural do Homem.
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Nas citações, vemos o autor descrever essa importante relação cultural com uma riqueza de detalhes surpreendente, mostrando o inequívoco papel de destaque que esses profissionais da escrita tiveram na evolução humana através da história.
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CITAÇÕES
"A circunstância feliz de terem os sumerianos adotado a argila como seu material de escrita, e tornado imperecíveis seus documentos cozendo-a, permite-nos seguir a história da escrita, desde seu início na Mesopotâmia. Mostra o desenvolvimento da escrita e da vida urbana avançando passo a passo. Não é por acaso que os mais antigos documentos escritos do mundo são contas e dicionários. Eles revelam as várias necessidades práticas que levaram à invenção da escrita sumeriana. Em parte alguma pode a origem econômica prática da escrita ser demonstrada tão claramente, porque em parte alguma pode essa arte ser acompanhada desde seu ponto de partida. Outros povos provavelmente começaram a escrever em materiais perecíveis, e só aplicaram sua escrita a inscrições em substâncias mais duráveis quando ela já estava bem adiantada. Os mais antigos documentos egípcios que sobreviveram são nomes e títulos em selos e vasos, notas de contas ou inventários, e breves registros de acontecimentos em pedaços de madeira encontrados nos túmulos reais da Primeira e Segunda Dinastias, em Abidos. Nessa época (3200 ou 3000 a. C., quando muito) o sistema já era muito mais maduro que o dos mais antigos documentos sumerianos." (pág180)
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"A invenção da escrita foi assim, provavelmente, em toda parte como na Suméria, inspirada pelas necessidades práticas da economia urbana. Admite-se que a escrita sumeriana foi inventada, e a princípio usada exclusivamente, pelos sacerdotes. Mas estes não a inventaram em sua condição de ministros da superstição, mas de administradores de propriedades terrenas. Como os ecribas egípicios e minóicos, eles usaram a invenção inicialmente não para finalidades mágicas e litúrgicas, mas para objetivos práticos e para a administração. A invenção da escrita (como a definimos) realmente marca época no progresso humano. Para nós, modernos, ela parece significativa principalmente porque oferece uma oportunidade de penetrar no pensamento mesmo de nossos ancestrais culturais, ao invés de tentarmos deduzi-lo através de suas manifestações imperfeitas nos fatos. Mas a verdadeira significação da escrita é que está destinada a revolucionar a transmissão do conhecimento humano. Através dela, o homem pôde imortalizar sua experiência e transmiti-la diretamente a contemporâneos que vivem distantes e a gerações que ainda não nasceram. É o primeiro passo para a elevação da ciência acima dos limites do espaço e do tempo. A utilidade das primeiras escritas, para essa alta missão, não deve ser exagerada. Elas não foram inventadas como meio de publicação, mas para as necessidades práticas das corporações administrativas. As primeiras escritas sumerianas e egípcias eram instrumentos bastante imperfeitos para a expressão de ideias. Mesmo depois de um processo de simplificação, que durou mais de 2.000 anos, a escrita cuneiforme empregava entre 600 e 1.000 caracteres distintos. Antes que pudesse ler ou escrever, o aluno tinha que decorar esse volume formidável de sinais e aprender as regras complexas de sua combinação. Os hieroglifos egípcios e as escritas hieráticas, apesar de seus elementos alfabéticos, continuavam sobrecarregados com uma surpreendente quantidade de ideogramas e determinativos, de modo que o número de caracteres exigido equivalia a cerca de 500. Nessas condições, a escrita era inevitavelmente uma arte de fato difícil e especializada, que tinha de ser aprendida através de longo estudo. A leitura continuava sendo uma iniciação misteriosa, só conseguida pelo ensino demorado. Poucos possuíam o tempo ou o talento para penetrar nos segredos da literatura. Os escribas eram uma classe relativamente limitada na antiguidade oriental, como na Idade Média. Esta classe, é certo, jamais se transformou em casta. A admissão às escolas não dependia de nascimento, embora não se saiba exatamente como todos os alunos eram selecionados. Mas o 'público ledor' deve ter sido uma minoria bem reduzida, em meio a uma grande população de analfabetos. A escrita era, na verdade, uma profissão, como a metalurgia, a tecelagem ou a guerra. Mas era uma profissão que desfrutava posição privilegiada e oferecia perspectivas de progresso a postos, poder e riqueza. A alfabetização era, assim, valorizada não como uma chave para o conhecimento, mas como uma possibilidade de prosperidade e avanço na escala social. (págs.181-182-183)
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"Na prática, reis, sacerdotes, nobres e generais se opõem a camponeses, pescadores, artesãos e trabalhadores. E nessa divisão de classes o escriba se coloca entre os primeiros: a escrita é uma profissão 'respeitável'." (pág184)
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"A imortalização de uma palavra na escrita deve ter parecido um processo sobrenatural; foi, sem dúvida, uma mágica o fato de que um homem há muito desaparecido da terra dos vivos ainda pudesse falar numa tabuinha de argila, ou num rolo de papiro. As palavras assim ditas deviam possuir uma espécie de mana. Dessa forma, os homens cultos no Oriente, como os eruditos na Idade Média, podiam voltar-se para os livros, de preferência à natureza." (pág184-185)
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"Mas as escolas para escribas funcionaram como o que hoje chamaríamos de institutos de pesquisas. Mesmo para as finalidades de ensino, era necessário organizar e sistematizar o conhecimento a ser transmitido. O posto de instrutor dava oportunidades e ocasião para acréscimos ao conhecimento, por uma espécie de pesquisa teórica." (pág185)
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LIVRO: A Evolução Cultural do Homem // AUTOR: Gordon Childe // EDITORA: Zahar // Rio de Janeiro: 1968.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

SABEDORIA 'FRANCISCANA' SOBRE O ÂNIMO

QUEM?
Dr. Francisco Rodrigues de Miranda (1918/1994). Alagoano, marido de Dona Ziláh, advogado, promotor da Justiça, filósofo amador sarcástico e avô desse Editor que aqui escreve.
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COMENTÁRIO
Caros Leitores, meu avô era - sem exagero - um homem fabuloso. Um exemplo para a família e para os amigos. Pessoa séria e simples, de hábitos sóbrios e bondade flagrante. No campo profissional lutou ferrenhamente contra a ditadura militar e, por isso, foi cassado e distituído de seu cargo de promotor. Ficou sem receber salários condignos com sua posição conquistada através de concurso público por muito tempo, até ser anistiado e poder reaver seus proventos através de ações legais. Devido a isso, praticamente não gozou dos benefícios e poucas benesses que essa profissão oferecia, como a estabilidade financeira; mas isso não alterou em nada sua dignidade e seu caráter, pois realizava-se com o pouco-muito que é ter a família e os amigos por perto e bem de saúde. Boa praça, era amante da literatura e praticamente 'descobriu' o nosso cultuado poeta Manoel de Barros, de quem era amigo pessoal. Das alegrias dele, que me lembro, viajar era a maior. E, sempre parando - claro - em todas aquelas barraquinhas de beira de estrada que vendem frutas e outras iguarias e alegrias de quintal que ele adorava trazer para a cidade, talvez como forma de 'reapresentificar' a vida simples do interior, da qual tanto gostava e tinha saudades.
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Bem, fato é que - independentemente desse brevíssimo histórico relatado, pura digreção, diga-se - esse respeitável Senhor patriarca máximo de nossa família, vira e mexe, soltava uma pérola do pensamento crítico e bem humorado que ostentava por trás daquela velha calma alagoana. Assim, ofereço ao deguste dos meus prezadíssimos Leitores essa verdadeira jóia do cinismo e da sabedoria universal de todos os tempos sobre o ânimo.
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Da Redação.
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AFORISMO
"Não desanimeis! Animais, como eu!"
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domingo, 13 de fevereiro de 2011

RUBEM ALVES: METODOLOGIA CIENTÍFICA, O CALDEIRÃO BORBULHANTE DE FATORES QUE GERAM AS REALIDADES

QUEM?
Rubem Alves (1933). Psicanalista, educador, teólogo e escritor brasileiro.
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CITAÇÃO
"Não há motivos para espanto. Isto, que acabamos de sugerir, é que aquilo a que os especialistas dão o nome de contexto da descoberta: o caldeirão borbulhante de fatores biográficos, sociais, emoções, intuições de onde surgem não só as teorias como também os poemas, as sinfonias, as utopias." (pág.169)
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COMENTÁRIO
Quando uma obra literária de divulgação científica alcaça a decíma sétima edição é porque já passou pelo crivo mais importante em termos editoriais: o leitor. Nessa situação, qualquer comentário ou crítica mais elaborado deixa de ter sentido, pois são, no mínimo, uns 17 mil livros editados 'seguindo' pela vida por si sós e sendo lidos a torto e a direito por aí, ilustrando e encantando. No caso desta, que destacamos hoje, não há a menor sombra de dúvida quanto à sua qualidade: Filosfia da Ciência, introdução ao jogo e suas regras, por Rubem Alves. Na obra o autor revela a verdadeira natureza do cientista que, despido de sua roupagem mítica, imaculada, utópica e quase celestial, é percebido e contextualizado como deve ser: como um ser humano falível e mortal, suceptível às mesmas mazelas e tentações como os demais seres contíguos e coetâneos que gozam de tal condição frágil e carnal de viventes nesse mundinho.
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Na citação vêmo-lo fazer referência à metodologia científica que, em tese, por deduções e experimentações protocolares, seria capaz de nos capacitar a inferir um julgamento de valor procedente e fundamentado diante de um problema dado qualquer.
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LIVRO: Filosofia da Ciência, introdução ao jogo e suas regras // AOTOR: Rubem Alves // EDITORA: Brasiliense // São Paulo: 1993.