sexta-feira, 12 de junho de 2009

OS ESCRIBAS E A COMUNICAÇÃO DE VALORES

QUEM?
Alexandre Quaresma (1967). Ambientalista, escritor contista e romancista brasileiro, pesquisador independente de nanotecnologia e impactos sociais. É videomaker, com mais de 25 anos de experiência pregressa, nascido em São Paulo, atual editor chefe e Escriba titular deste Blog. Autor dos livros A Testemunha, conto ecológico de suspense, e Nanocaos e a Responsabilidade Global, ensaio de divulgação científica sobre nanotecnologia, ambos publicados por esta Editora virtual. Diretor dos documentários de divulgação científica Nanotecnologia O Futuro é Agora, Para Entender as Nanotecnologias, Nanotecnologias e o Mundo do Trabalho, Reflexões Sobre o Desenvolvimento das Nanotecnologias e Nanotecnologias Sociais.
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ARTIGO
"- Toda comunicação é comunicação de valor."
Assim diz com propriedade minha amada mestra preceptora e filósofa. E, se pensarmos bem, ela tem toda razão. Sim, porque toda comunicação é, em última análise, transmissão de valor, sejam eles éticos, estéticos, políticos, sociais, biológicos, didáticos etc. Quando, por exemplo, falamos, estamos, como já dizia sabiamente mestre Lacan, falecendo o resto. Iluminamos algo específico, para lançar à sombra todo o resto. E todo valor, geralmente nasce da importância do mesmo, quase sempre relacionado à permanência e, ao nos comunicarmos, transmitimos, infalivelmente, este valor. Ler uma notícia num jornal e comentar com alguém minha opinião sobre os fatos que li na matéria, é então um exercício de transmissão de valor na comunicação. E é assim que tudo que conhecemos se constrói. Muitos, como eu, associam essa transmição de valores à transmissão de energia. Sim, energia telúrica, desta vulgarmente encontrada nos seres vivos e em todas as coisas.
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As formigas se comunicam através de enzimas e feromônios e o formigueiro, assim, é onisciente. Naqueles pequenos encontros onde estes simpáticos animais tocam mutuamente suas anteninhas, num breve contato - fenômeno denominado pelos biólogos como trofolaxe -, seguem, em velocidade estonteante, em ambas as direções - como num cabo de fibra ótica invisível - toneladas de informação que, com certeza, são energia e valor também, e que vão manter informado e em segurança toda a comunidade do formigueiro. É comum que nós, com nossos corpos e tamanhos enormes, diante destas minúsculas criaturas, sem querer, matemos ou esmaguemos alguns destes pequenos e inocentes seres. Ao primeiro contato de um outro membro vivo da colônia, este fica perplexo, como qualquer outro ser vivo diante da morte - e passa a informar às demais, que vão informar às demais, infinitamente, até que todos estejam informados do 'perigo' detectado ali.
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Com a trágica e lamentável queda do avião da Air France no Atlântico, no fatídico Vôo 447, pudemos observar um fenômeno que é uma réplica perfeita deste sistema de comunicação das formigas. Usamos métodos similares para um resultado idêntico. Em pouco tempo a comunidade mundial, midiática e interconectada, estava ciente do famigerado acidente. Neste contexto, vemos que a questão da comunicação e do valor passa necessariamente pela questão da diferença. Um avião que cai no meio da noite no mar é uma diferença tremenda, especialmente em relação ao que estamos acostumados a considerar quando o assunto são viagens aéreas, ou seja, o acidente diz respeito ao mundo, à humanidade, a este enorme formigueiro humano que somos nós. É na diferença que se constrói o valor. O valor, para a coletividade da tragédia supracitada, é conseguirmos achar o motivo da queda, o que a provocou, e impedir que outras semelhantes venham a ocorrer. Uma diferença que faz toda a diferença. Poucos andam de avião, é verdade, mas trata-se aqui da eterna e interminável marcha humana em busca do conhecimento, de novos saberes, da edificação de valores, da construção da vida em sociedade - da permanência. Anda-se de avião - quem pode, e quer - mas anda-se também de carroça, por exemplo, que é um meio de transporte antiquíssimo, que também demandou tempo, tecnologia e, indubitavelmente, transmissão e comunicação de valores para se consolidar. É interessante notarmos o quão recente é tudo isso. Hoje temos televisão, internet, telefones móveis e sem fio, GPS's; mas, até bem pouco tempo, esta informação era transmitida a grandes distâncias unicamente por via oral e, em seguida, pela tradição escrita, que foi ulterior e subsequente àquela.
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Os Escribas foram uma casta de homens de letra cuja profissão consistia passar para papiro, ou para outro suporte qualquer disponível, idéias, informações, conceitos, doutrinas, histórias, orações, enfim, tudo que devia e necessitasse ser registrado, e também copiar à exaustão tais textos, para que a informação pudesse permanecer 'gravada' e pudesse 'circular', afixada, conformada, num outro suporte que não a fala, mas, que ainda assim, pudesse manter a fidedignidade de seu teor e conteúdo. Tarefa trabalhosa e nobre. Sim os escribas serviram aos nobres e aos que estavam no poder, ou próximos a ele - mas o que é então nossa civilização, se não isso? A escrita tinha muito a ver com o controle, com o poder, com a dominação - mas o que não é isso no contexto do Contrato Social e no desenvolvimento da vida humana na Terra? Assim, amados por uns, odiados por outros, os Escribas literalmente escreveram a história da humanidade com suas penas incansáveis e, se sabemos hoje de acontecimentos longínquos, de outras épocas distantes e perdidas na linha do tempo, num passado obscuro e intocável, foi graças a estes infatigáveis trabalhadores do verbo escrito.
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Hoje, com a aparente - digo aparente, porque toda conjectura é questionável, falível e refutável - democratização da comunicação através de meios modernos e baratos de comunicação, como a internet, surgem os novos escribas digitais. Pessoas que, como eu, aproveitam-se das benesses e facilidades da era digital para tratar de escrever idéias, contar causos, conceber valores, gerar informações e transmiti-las livremente pelos quatro cantos do Planeta, criando diferenças e gerando novos valores, usando e abusando da comunicação. E pensar que a rede internacional de computadores foi um efeito colateral positivo da Segunda Grande Guerra Mundial?! E que graças a ela podemos trocar informações e valores numa velocidade tão admirável, e que isto acabou saindo das mãos dos caras que criaram o troço, e vindo parar na mão da coletividade, abrindo uma nova perspectiva cultural para a civilização, ampliando monumentalmente nossa capacidade de percepção da realidade à nossa volta, além de trazer, como num passe de mágica, outras muito distantes de nós geograficamente, de maneira inauguradora.
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Êta mundinho besta este nosso! Incrível, besta e frágil.
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Da redação.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

AS MEMORÁVEIS VEREDAS DE GUIMARÃES

QUEM?
João Guimarães Rosa (1908/1967). Mais conhecido como Guimarães Rosa. Um dos mais importantes escritores brasileiros de todos os tempos. Foi também médico e diplomata. Seus contos e romances ambientam-se quase todos no chamado Sertão brasileiro. A sua obra destaca-se, sobretudo, pelas espetaculares inovações de linguagem, sendo marcada pela influência de falares populares e regionais. Tudo isso, somado a sua erudição, permitiu a criação de inúmeros vocábulos a partir de arcaísmos e palavras populares, invenções e intervenções semânticas e sintáticas. Autor do épico, imortal e memorável Grande Sertão Veredas.
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COMENTÁRIO
Guimarães Rosa escrevia com alma cabloca, curtida de solidões e ares de interior, de imensidão. Falava sobre uma terra de dificuldades, de homens e mulheres briosas, de cangaceiros, de cavalgadas, rachada de secas e encharcada de águas límpidas, de veredas majestosas, repletas de sol, de lua e vento, vento agreste, que trás a notícia, que acaricia a pele ressequida, e que entranaha no coração da pessoa que ali vive um 'não sei o que', que vai fazendo a alma engiar. Redobrar-se sobre si. Escrevia com o espírito repleto de signos e símbolos, amalgamados e impregnados através dos tempos imemoriais, manifesto no falar e nos costumes da gente simples deste imenso país chamado Brasil. Ele descrevia, através de sua prosa fina e inauguradora, um Brasil desconhecido dentro do próprio Brasil, rico, belo, valente, emocionante e surpreendente, em sua complexidade de riquezas inaudaitas, de paragens belíssimas, de gente brava, um verdaeiro mundo dentro do mundo, um infinito de campos e espaços abertos naturais; sim: O Grande Sertão de Guimarães Rosa.
Na citação, vemos o mestre tupiniquim da pena usar e abusar em grande estilo de seus elementos básicos de criação literária: brasilidade, etmologia e cultura do sertão.
Livro para ler, e re-ler de dez em dez anos, sem ter medo de se decepcionar.
Da Redação.
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CITAÇÃO
"Sús, esbarrou o cavalo tão de repente, que o corpo dêle se encurtou pela metade. Sô Candelário. Êsse era alto, trigueiro azul, quase preto, com bigode amarelecido. Homem forçoso, homem fúria. Mandou que mandava. Em hora de fogo, pulava à frente de todos, bramava o burro. Tomou a chefia geral, debaixo dele o Hermógenes parecia um diabo coitado. Sô Candelário era o para enfrentar Zér Bebelo. Salvante que seria para tudo. Se apeou, ficou um demorado tempo de costas para a gente." (pág183)
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LIVRO: Grande Sertão Veredas // AUTOR: Guimarães Rosa // EDITORA: José Olympio // Rio de Janeiro // 1972

terça-feira, 9 de junho de 2009

A COLOMBA DE PROSPER MERIMÉE

QUEM?
Prosper Mérimée (1803-1870). Notável dramaturgo, contista, historiador e arqueologista francês. Foi o primeiro a traduzir obras literárias russas para o francês. Sua prosa elegante se imortalizou com Carmen (1845). Esta foi sua primeira novela de sucesso.
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COMENTÁRIO
Colomba (1840), conta a história de uma jovem moça corsa que obriga seu irmão a cometer um assassinato para se vingar. Seria só isso, se não se tratasse de um mestre da pena, como é o caso de Merimée. Este competentíssimo autor francês nos traz uma época distante, repleta de aventuras e exotismos culturais, onde entrevemos mundos longínquos, de tradições fortes e marcantes, sempre com seu estilo clássico e elegante.
Sem maiores delongas, duas citações de Colomba, romance de Merimée, onde podemos ver um pouco da cultura corsa, referente à Córsega, esta ilha a Oeste da Itália, que é a quarta ilha do Mar Mediterrâneo por extensão territorial depois da Sicília, Sardenha e Chipre, universalmente conhecida como o berço e terra natal de Napoleão Bonaparte.
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CITAÇÃO
"Afinal, chegou a hora de partir. Orso apertou, ainda uma vez, a mão de miss Lídia. Colomba abraçou-a, depois ofereceu os lábios ao coronel, que então se maravilhou com a delicadeza corsa. Da janela do slão, miss Lídia viu os dois montarem a cavalo. Brilhavam os olhos de Colomba, numa alegria maligna. Esta grande e forte mulher, fanática pelas suas idéias de honra bárbara, o orgulho estampado na fisionomia, os lábios curvados num sorriso sardônico, fez lembrar a miss Lídia os temores de Orso; e a jovem inglesa julgou ver um mau gênio conduzindo-o a um abismo." (pág61)

"A cerca de um quilômetro do povoado, depois de muitos rodeios, Colomba estacou de repente, numa curva brusca do caminho erguia-se, aí, uma pequena pirâmide de ramos - uns verdes, outros secos - todos formando uma pilia de quase três pés de altura, da qual apontava a extremidade superior de uma cruz de madeira pintada de preto. Em várias regiões da Córsega, principalmente nas montanhas, um velho costume, que talvez se prenda às supertições do paganismo, obriga os passantes a atirar uma pedra ou um galho de árvore sobre a sepultura daqueles que morreram de morte violenta. Durante muitos anos, enquanto a recordação da tragédia permanecer na memória dos homens, tais oferendas se acumulam dia a dia. Chamam a isto o montão, o mucchio de alguém." (pág80)
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LIVRO: Colomba // AUTOR: Prosper Merimée // EDITORA: Martins // São Paulo // 1945

terça-feira, 2 de junho de 2009

TRIBUTO A JOSÉ OLYMPIO

QUEM?
José Olympio Pereira Filho (1902/1990). Grande editor e livreiro brasileiro. Empresário ousado e visionário de extrema sensibilidade, foi o fundador da editora que leva seu nome, a Livraria e Editora José Olympio no Rio de Janeiro em 1931.
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CAUSO
José Olympio era o cara. Importantíssimo para nossa cultura e história literária. Homem de Letras que entendia do assunto e conhecia a matéria, ou seja, como se diz no popular: era do ramo. Foi, sem sombra de dúvida, o responsável por nossa atual cultura livresca e pelo que somos enquanto leitores. Sensível e competente, fomentou, como empreendedor do mercado editorial e livreiro que era, publicações, indiscutivelmente, de alto nível. Tinha o tino do negócio, gostava da coisa escrita. Com sua sensibilidade editou autores importantes da nossa língua, que vieram a se tornar célebres e clássicos. Vale notar que suas publicações eram sempre bem cuidadas, na maioria das vezes de capa dura, com iluminuras, capitulares, ilustrações e tudo o mais que um livro de verdade deve ter, além de serem traduzidas - quando se tratavam de obras estrangeiras - por grandes mestres da literatura brasileira de seu tempo.
Este humilde Escriba que vos escreve agora, como rato inveterado de sebos que é, sabe o que significou o trabalho inestimável deste brasileiro importantíssimo e notável que mudou, diga-se de passagem, para muito melhor nossa cultura. Esta figura ímpar chamava-se José Olympio. O homem sabia do letrado e, assim, publicou tudo que achava bom - ou "o que prestava", como se dizia à época de meu avô Francisco de Miranda, contemporâneo e amigo pessoal do José em questão. Aliás, tenho uma história curiosíssima que não posso, e nem poderia, deixar de dividir com os meus nobres Leitores. Este senhor, meu avô, o Velho Chico, homônimo do rio, promotor de justiça e amante inveterado das Letras, protagonizou um evento, no mínimo, extraordinário.
Ao saber que meu avô iria ao Rio de Janeiro tratar de negócios, Jorge Amado, nosso genial e imortal romancista, também amigo pessoal dele, pediu-lhe que levasse uma encomenda para entregar somente nas mãos de José Olympio. Era um calhamaço de papéis redigidos à máquina. Meu avô, que media quase um e noventa de altura e era muito desligado, ao chegar ao centro do Rio, mais precisamente à Avenida Rio Branco, saltou do táxi e, por distração, esqueceu no banco de trás a referida encomenda. Por sorte, o trânsito estava pesado, já à época, e ele pode, de terno e pasta 007 nas mãos, correr e alcançar o tal táxi, e recuperar o referido material. Graças a este golpe de azar, seguido de um de sorte, se é que estas coisas existem de fato, sua missão foi concluída com sucesso e êxito. Entregou nas mãos de José Olympio, conforme o pedido do autor, os papéis que levava em sua viagem. Que bom que foi assim, pois tratava-se, nada mais, nada menos, do que os originais de Capitães de Areia. É bom lembrar que não havia xérox naquele tempo, nem muito menos computador. Que loucura, não?! Quem me contou esta aventura verídica foi minha querida e amada avó, Dona Zilah Macedo de Miranda, viúva do distraído e saudoso Dr. Francisco Rodrigues de Miranda, o velho Chico.
Que sorte a nossa, hein?!