terça-feira, 13 de outubro de 2009

OS DEUSES TÊM SEDE DE ANATOLE FRANCE: OS MUITOS LADOS DE UMA MESMA HISTÓRIA

QUEM?
Jacques Anatole François Thibault, mais conhecido como Anatole France (1844/1924) Talentoso escritor francês. Autor de Os Deuses Têm Sede. Outras obras são: Thais, 0 Lírio Vermelho, O poço de Santa Clara, A rebelião dos anjos entre outras.
*
COMENTÁRIO
Não é de hoje que, vira e mexe, uma meia dúzia de três ou quatro malucos vêm, tomam o poder, e fazem dele um verdadeiro cavalo de batalhas, gerando calamidades das mais diversas espécies, e derramando o sangue de pessoas, muitas vezes, inocentes. Mesmos que estes malucos estejam lutando por mais liberdade, igualdade e fraternidade para a coletividade. O poder corrompe as intenções. Aleija a boa vontade e despedaça as ilusões. Sublima o indivíduo, destrói o ser. Turva o saber e cega a razão. Interesses, inveja, despeito, fundamentalismo, hipocrisia, tentação, cobiça, prevaricação, imprudência, corrupção, inveja, dinheiro, comodismo são apenas alguns dos sedutores atalhos que podem fazer o homem bom se desvirtuar. Difícil é estar imune trafegando nas proximidades do poder, onde a promiscuidade é regra e não a exceção, onde o virtuoso facilmente destoa do grupo que deveria integrar, presa de seu fisiologismo e de seus vícios mais sórdidos. Política: maldita profissão inferior que não requer referência de nenhuma espécie para restringir o ingresso da turba em suas fileiras. Afora, é claro, o sufrágio das urnas; ou seja, a voz do Povo que, diga-se, só a tem de fato de quatro em quatro anos, e olhe lá! Acontece, caro Leitor, que a voz do Povo é burra, pois o Povo é, em sua maioria esmagadora, analfabeto, quase sempre manipulável e volúvel - volátil mesmo, diria eu - e capaz das maiores atrocidades quando reunido em massa e irritado em seus brios mais íntimos de sua cidadania. Pois - como já escreveu sabiamente meu prezado amigo Roberto Raup da belíssima e histórica Rio Pardo/RS - quando aglomerados, passamos a reagir instintivamente às situações do ambiente que nos contém numa espécie de Síndrome de Manada, onde retornamo-nos animais brutos e de novo irracionais, a ponto de esmagar tudo em nosso caminho, incluído nossos semelhantes. Foi assim nas Cruzadas, na Santíssima Inquisição, no nazismo, na Ditadura Militar brasileira, na África do Sul, no Vietnã, no Mundo inteiro e, como não poderia deixar de ser, também na Revolução Francesa. As tais liberdade, igualdade e fraternidade foram conquistadas - 'em parte', na ampla aplicabilidade e compreensão do termo aqui empregado - com suor, lágrimas e sangue, muito sangue! Quando a realeza privilegiada da França do Século XVIII caiu, não perdeu apenas o direito às suas posses terrenas e materiais, suas riquezas e luxos, mas também às próprias cabeças que ficavam, até então, firmes com empáfia em cima de seus pescoços, antes de serem guilhotinadas pelos representantes do povo na Convenção e no Tribunal Revolucionário. Não é brincadeira não! Montanhas de cabeças decepadas, oriundas de julgamentos sumários e viciados; um banho de sangue; paranóia, medo, perseguição, filhos denunciando pais com objetivos sórdidos e pecuniários, vizinhos traindo vizinhos, irmãos, pais, padres, soldados, companheiros; perseguidos, presos e mortos; enfim, uma lástima. E, vale notar, isso tudo se dava ao mesmo tempo em que nasciam os primeiros raios da luz que, radiante, iluminaria as mentes humanas mais elevadas, no sentido da aplicação prática dos lemas altruístas já mencionados aqui que, posteriormente, viriam a servir de estrutura sólida e base, para espelhar a constituição moral do Velho Mundo e das demais nações do mundo ocidental, na hora de forjar suas Cartas Magnas, Constituições e seus tratados democráticos de civismo. Lições importantes, apreendidas através dos tempos a ferro e a fogo! Verdades que nos ensinam muito até hoje, mesmo que salvaguardadas nos tempos idos de outrora, lacradas com o selo do passado.
*
Para vivermos em grupo, tivemos que criar uma série de dispositivos complexos e complicados de poder e de controle, sem os quais a vida social se torna impossível e inviável. Olhar para trás, através das lentes - mesmo que distorcidas - da história - pois sempre há a ótica parcial do punho que detém a pena que registra os fatos - e isto nos permite uma constatação plena da nossa incapacidade e insuficiência tácita em compreender a nós mesmos, especialmente, quando nos juntamos, nos revoltamos e resolvemos juntos e à força mudar o Mundo. Força estranha e poderosa que assusta e subjuga qualquer oposição, que soergue o panteão da sabedoria, mas que, de igual modo, assinala no anais da história nossa fragilidade indelével diante das seduções do poder, jogando na lama imunda da infâmia e da indignidade toda uma espécie. Ser humano, sem dúvida, é ação e reação; revolução e ilusão; contradição; ser humano é conflito.
*
Nas citações escolhidas a dedo dentro da interessantíssima obra que é Os Deuses Tem Sede de Anatole France vemos patente a marca certeira do gênio que sabe, com poucas palavras, passar toda uma miríade de nuances e sensações que, o tolo escrevinhador comum, gastaria páginas e páginas para descrever, sem sucesso e sem a menor graça. Os Deuses Tem Sede é um livro muito bem escrito que serve - entre muitas outras coisas - para nos reconhecermos a nós mesmos como falíveis e humanos, principalmente, quando expostos às feridas pútridas da política e do poder, pústulas repugnantes e contagiosas estas que, pululam na sociedade contemporânea, mas que, todavia, vez por outra, desempenham papéis fundamentais nas conquista de avanços inestimáveis para a humanidade, mesmo que a um altíssimo preço.
*
Um abraço livre, igual e fraterno para os meus poucos e fiéis Leitores.
*
Da Redação.
*
CITAÇÕES
Sobre a autêntica filantropia num diálogo entre o personagem humanista e ex-financeiro Brotteaux, e um padre que este acolheu na rua condenado á prisão e provavelmente à morte, sob pena de ser ele mesmo Brotteaux, incriminado:
"Deu o colchão ao seu hóspede e guardou a palha para si, mas o religioso reclamou-a por humildade, com tal convicção que teve de o satisfazer. Depois de terminar as arrumações, Brotteaux soprou na vela, por economia e por prudência.
- Senhor - Disse-lhe o religioso - reconheço o que faz por mim; mas, tem pouco interesse para o senhor que eu o considere bom. Possa Deus recompensá-lo! Isso sim, teria interesse para o senhor. Mas Deus só leva em conta o que é feito para Sua glória e o que provém de uma virtude puramente natural. É por isso que lhe suplico, senhor, que faça por Ele o que foi levado a fazer por mim.
- Meu pai - respondeu Brotteaux - não tenha a menor preocupação e não pense dever-me algum reconhecimento. O que faço neste momento, e de que exagera o mérito, não o faço por amor ao senhor: porque, afinal, embora o senhor seja amável, conheço-o há pouco tempo para o amar. Também não o faço por amor à humanidade: pois não sou como Don Juan paracrer, como ele, que a humanidade tem direitos; e estepreconceito num espírito tão livre como o seu, aflige-me. Faço-o por aquele egoísmo que inspira ao homem todos os atos de generosidade e dedicação, fazendo-o reconhecer-se em todos so miseráveis, dispondo-o a lamentar o bseu próprio infortúnio no infortúnio alheio e levando-o a auxiliar um mortal semelhante a ele pela natureza e pelo destino, até acreditar que socorre a si mesmo socorrendo-o. Faço-o também por passatempo: porque a vida é agora tão insípida que é preciso arranjar distração a todo custo, e a benfeitoria é um divertimento bastante enfadonho a que nos damos na falta de outreos mais saborosos; faço-o, enfim, por espírito de sistema e para lhe mostrar do que é capaz um ateu." (pág159)
*
Mais adiante, no mesmo debate filosófico entre os dois - o padre e Brotteaux - numa citação de Epicuro feita pelo segundo sobre o poder de Deus:
"Epicuro disse: Ou Deus quer impedir o mal e não pode, ou pode e não quer. Se quer e não pode, é impotente; se pode e não quer, é perverso; se não pode nem quer, é impotente e perverso; se pode e quer, por que não o faz, meu pai?" (pág181)
*
Sobre uma passagem dramática quando Evaristo Gamelin, jurado do tribunal revolucionário, um dos personagens principais da história com amplos poderes, e sua amante, Elodie, numa cena, literalmente, de amor e ódio, se digladiam e se amam:
"-Estás vingada - disse. - Jacques Maubel já não existe. A carruagem que o conduzia à morte passou de baixo da tua janela, rodeadea de archotes.
Ela compreendeu:
- Miserável! Foste tu que o mataste, e não era o meu amante. Não o conhecia... nunca o vi... Que homem era esse? Era um jovem, amável... inocente. Mataste-o, miserável! Miserável!
Caiu desvanecida. Mas, nas sombras desta morte, sentia-se ao mesmo tempo inundada de horror e de voluptuosidade. Reanimou-se; as suas pesadas pálpebras descobriam o branco dos olhos, a garganta arquejava, as mãos procuravam o seu amante. Apertou-o nos braços, enterrou-lhe as unhas na carne e deu-lhe, com os seus lábios atormentados, o mais mudo, o mais surdo, o mais longo, o maisn doloroso e o mais delicioso dos beijos.
Ela amava-o de todo o coração e, quanto mais ele lhe aparecia terrível, cruel, atroz, quanto o mais o via coberto do sangue das suas vítimas, mais tinha fome e sede dele." (pág206)
*
LIVRO: Os Deuses Têm Sede // AUTOR: Anatole France // EDITORA: Otto Pierre Editores // Lisboa // Sem data
*

Nenhum comentário: